terça-feira, janeiro 30, 2007

"A Lei Abre os Olhos" ou Decálogo de Aberrações

Leituras de um Mandado de Busca e Apreensão (Processo nº 2006.30.00.002657-0 da 3ª Vara Cível da Justiça Federal - Acre

I – Analisando o teor do texto constante do Mandado de Apreensão e Busca, concedido pelo Juiz Federal Alysson Maia Fontenele que autorizou o "seqüestro" dos equipamentos da Rádio Livre Filha da Muda, no campus da Universidade Federal do Acre, no último dia 26 de janeiro, constatamos um impressionante leque de aberrações e atentados contra os direitos e princípios constitucionais. Senão vejamos: um Delegado de Polícia Federal, a partir de solicitação formal da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), abre inquérito policial "postulando a busca e apreensão dos equipamentos" da Rádio Livre Filha da Muda que "estariam instalados na UFAC, provavelmente no Anfiteatro Garibaldi Brasil".

II – Segundo o texto assinado pelo juiz federal que autoriza a busca e apreensão, na instrução do Inquérito Policial, o referido delegado utilizou uma entrevista publicada no Blog de um jornalista local (naturalmente na internet), onde também continham "fotos do provável local de instalação da rádio". No afã de bem cumprir com sua missão de "zelar pela ordem e segurança pública", o empenhado delegado constatou que, de acordo com o laudo produzido pela Anatel, a mesma não lacrou os equipamentos da Rádio Livre, "em razão de o Anfiteatro estar fechado e não haver representante no local, mas que foram tiradas fotos da antena". Vale ressaltar que, nesse caso, se percebe não apenas uma transferência de responsabilidade e inversão de papéis entre a Anatel e a Polícia Federal. Não obstante foram descumpridas formalidades protocolares utilizadas por essa agência em todo o país, como podemos perceber a partir das palavras de seu Superintendente Nacional, Edílson Ribeiro dos Santos que, em entrevista concedida à Radiobrás, em janeiro de 2005. Nessa entrevista, o mesmo faz uma detalhada explicação sobre os procedimentos utilizados pela agência quando recebe uma denúncia de que existe "rádio operando clandestinamente". Segundo ele, "a primeira providência que a Anatel toma é fazer uma notificação", estabelecendo o prazo de cinco dias para o acusado ou acusados se defenderem administrativamente. Nesse caso, somente após o prazo da defesa e caso a mesma não seja satisfatória é que a Anatel "instaura um processo administrativo contra [a rádio acusada] e informa a Polícia Federal para que solicite o mandado de busca e apreensão à justiça". Para espanto nosso e de todos que primam pela observância das regras do estado de direito, fundamentalmente, dos princípios estabelecidos na Constituição Federal, nada disso foi feito, posto que, embora a Rádio Livre Filha da Muda esteja funcionando desde março de 2006, até a presente data não recebemos nenhum documento dos administradores/servidores da Anatel no Acre.

III – O Ministério Público Federal (MPF), de posse do inquérito policial, "confirmou que a rádio é audível na sede daquela procuradoria, que dista cerca de 8 Km da UFAC", dando um parecer favorável ao pedido de apreensão e busca dos equipamentos, solicitado pelo delegado de PF. Fica evidente que o MPF, pelo que consta do texto do Mandado em discussão, se limitou a ouvir a transmissão da Rádio Livre Filha da Muda e opinou favorável ao pleito do delegado, sem solicitar um laudo técnico das supostas interferências que a rádio estaria provocando; sem procurar saber que relevantes questões de interesse público levaram o delegado a fazer tal solicitação; sem procurar ouvir os responsáveis pela rádio; sem dar o direito ao contraditório; sem atentar para os princípios constitucionais no tocante a liberdade de expressão; sem sequer enviar seus peritos ao local de funcionamento da rádio, ou seja, assumindo uma postura completamente parcial e questionável para um órgão público que tem papel e poder fiscalizador.

IV – O mais paradoxal de tudo, no entanto, se encontra nos demais pontos do Mandado de Busca e Apreensão, assinado pelo Juiz Federal Substituto, Alysson Maia Fontenele, posto que, segundo ele, "para que seja implementada [tal] medida, lastreada no interesse prevalente da sociedade na repressão das condutas antijurídicas, há necessidade de fundamento relevante, cuja existência passo a analisar." Grifamos essas passagens do texto da decisão do juiz, em razão do evidente contra-senso que apresentam, posto que falar que o inquérito policial contém relevante fundamento na preservação dos interesses da sociedade e na repressão de condutas antijurídicas, é, no mínimo, uma subestimação de nossa capacidade em entender os fundamentos básicos da legislação brasileira, inclusive seus atavismos e ambigüidades, seus vazios e contradições, suas defasagens em relação ao próprio movimento da sociedade e, principalmente, os interesses de classes subjacentes em leis que têm sido utilizadas na maioria das vezes de forma conveniente e circunstancial por uma justiça cartorial e servil aos interesses de grupos políticos hegemônicos, de cartéis que controlam o poder econômico e da grande mídia radiofônica e televisiva.

Responda-nos Meritíssimo Juiz, que interesses relevantes para a sociedade riobranquense tem o fechamento de uma rádio cuja única finalidade é veicular programas de debates, opiniões, produção musical e artística e resultados de pesquisas e extensão produzidas no interior de uma universidade pública? Será pelo fato que, ao contrário das rádios comerciais, em nossa Rádio Livre não cobramos taxas, nem cachês, nem jabaculês e nem dízimos para veicular a produção musical de pessoas simples e de grupos de garotos e garotas que tem sido violentamente excluídos dos espaços de produção artística, sem a justiça fazer nada para defendê-los? Será pelo fato de que a Rádio Livre não tem dono, não tem político e nem chefe religioso mandando e decidindo o que se fala, o que se toca e o que se difunde para a população? Será pelo fato de que não temos a concessão pública que, como todos sabem, no Brasil se dá pela barganha política e pela subserviência àqueles que estão a frente do Ministério das Telecomunicações, numa verdadeira afronta ao estado de direito sem o Ministério Público Federal ou a Justiça Federal fazer nada para garantir os direitos e interesses dos cidadãos dessa nossa "república de banana"?

Responda-nos, Meritíssimo Juiz de Direito, que conduta antijurídica nós cometemos para merecer esse brado de repressão? Em que concepção jurídica se fundamenta essa vossa opinião? Acaso desrespeitamos os preceitos da Constituição Federal de 1988, bem como da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto de São José da Costa Rica que re-afirmam: todos tem direito a liberdade de expressão e de comunicação, sem censura prévia ou licença? Configura-se como conduta antijurídica o fato de, abertamente (e não clandestinamente como consta em vosso Mandado), termos criado as condições mínimas para que as coisas que fazemos, as idéias que pensamos, os conhecimentos que produzimos e que trocamos em todas as formas de intercâmbio com aqueles que não estão nesta universidade sejam socializados, debatidos publicamente, democratizados pela palavra falada e transmitida pelo ar através de ondas sonoras?

Responda-nos Meritíssimo Juiz, trata-se de conduta antijurídica a transmissão pelo ar, tendo em vista que não estamos invadindo e nem cerceando o direito de ninguém, posto que o ar é um bem de uso comum e coletivo, como assegura a Constituição Brasileira? Trata-se de conduta antijurídica fazer uso de um bem ambiental, portanto de uso coletivo e que não pode ser apropriado e, muito menos, monopolizado por nenhuma pessoa física ou jurídica?

V – No item 8 do Mandado de Apreensão e Busca, a decisão do Juiz evidencia que "a questão das rádios clandestinas é polêmica. Uns defendem o direito de expressão e outros o direito à segurança, dado que estas rádios operam em freqüência que causam interferência sobre outros sistemas de comunicação, como na comunicação da torre de controle com aeronaves, nos sistemas privados, nas centrais com ambulâncias e veículos da polícia". O que impressiona, e negativamente, é ver como um órgão como o MPF e, principalmente, um Juiz Federal que é responsável pela aplicação/cumprimento das leis e fazer justiça, tenha se deixado levar por argumentos tão pífios e sem sustentação.

Em primeiro lugar, porque a Rádio Livre não é clandestina, posto que está instalada no âmbito do espaço livre e autônomo de uma Instituição Federal de Ensino Superior, cuja autonomia é resultado de uma das mais importantes conquistas da sociedade brasileira e está inscrita no texto de nossa constituição. Além do mais, como pode ser clandestina uma rádio que tem blog na internet, telefone para contato, programação com 24 horas no ar e portas e microfones abertos para todos que desejarem manifestar livremente seus pensamentos e opiniões?

LIVRE, meritíssimo juiz, segundo os modernos dicionários da língua portuguesa é "adj2g. 1. Que não está sujeito a algum senhor. 2. Que não está, ou já não está, prisioneiro; solto. 3. desprendido, solto. 4. Que age por si mesmo; independente. 5. Que goza dos seus direitos civis e políticos. 6. Cujo funcionamento sem coerção ou discriminação é garantido por lei. 7. Permitido, autorizado. 8. Isento (1). 9. Disponível, desocupado. 10. Desimpedido, desembaraçado. 11. Que não está casado. 12. Licencioso. 13. Sem limites; imenso". Enquanto que CLANDESTINO é: "adj. 1. Realizado às ocultas. 2. Ilegal"

Em segundo lugar, porque antes de decidir sua sentença com base em suposições e afirmativas sem nenhum fundamento ou laudo técnico de profissionais da área de física (que por sinal estão a disposição na própria UFAC), o Juiz Alysson Maia Fontenele e o próprio MPF deveriam ter, no mínimo, solicitado informações junto ao Coletivo Lagartixa, responsável pelo funcionamento da Rádio Livre, sobre que tipo de equipamento tem sido utilizado em nossas transmissões e teríamos colocado em suas mãos uma cópia do Certificado de Homologação nº 1363-03-0559, assinado pela Anatel, comprovando tratar-se de um transmissor seguro e travado de fábrica por um dispositivo chamado PLL que impede absolutamente qualquer mudança de freqüência e portanto impossível de provocar qualquer interferência, muito menos as alegadas nos termos do Mandado. Não obstante, trata-se de um transmissor de TA-25 wattes de potência, fabricado pela Telemarc Indústria e Comércio de Equipamentos para Telecomunicações Ltda, com sede na cidade de Poá – São Paulo, Rua Guairá, 330, Vila Perracini, CEP 08552-360. Para se ter uma idéia do que significa um transmissor com 25 wattes de potência, basta lembrar que as rádios de Rio Branco operam com transmissores com potência que variam da casa dos 2.500 (dois mil e quinhentos) aos 5.000 (cinco mil) wattes.

VI – Logo adiante, o texto de Mandado de Busca e Apreensão, novamente comete um lapso imperdoável quando afirma que "no ar existe um emaranhado de transmissões eletromagnéticas simultâneas, que não interferem uns nos outros em razão de operarem em faixas diferentes, e com equipamentos calibrados, ou seja, aferidos quanto aos filtros necessários para que sons espúrios não sejam emitidos". Em seguida, afirma o meritíssimo Juiz: "as rádios clandestinas geralmente possuem equipamentos mais baratos, sem os filtros necessários, o que causa a interferência". Mais uma vez fica evidente uma visão generalizante que, seguindo a lógica que marcou toda a montagem do inquérito policial, foi utilizada na perspectiva de fazer juízos de valores permitir uma ação truculenta e autoritária contra dispositivos constitucionais e direitos sociais duramente conquistados em nosso país. Em quais laudos foram baseadas essas afirmações? Por que o delegado da PF, o MPF e o Juiz Federal não solicitaram informações sobre a natureza de nossos equipamentos? Por que uma questão polêmica como essa da liberdade de expressão por meio da difusão radiofônica foi tratada de forma tão parcial e autoritária? Essas e outras questões precisam ser respondidas sob pena de violação dos direitos sociais e dos princípios constitucionais.

Em relação aos termos, aparentemente técnicos, que falam de "sons espúrios", não podemos deixar de evidenciar mais uma tendência a desclassificar e condenar as atividades da Rádio Livre, sem a devida apuração. Além do mais, em nossa opinião, espúrio é o arbítrio e a intolerância e, principalmente, a aplicação casuística de dispositivos de leis menores que estão em contradição com o que reza a Carta Magna da nação brasileira.

VII – No item 11, do Mandado de Busca e Apreensão, o Juiz Alysson Maia fontenele, enfatiza que "a lei pune o crime de atividade clandestina de telecomunicação", citando em sua argüição condenatória a Lei nº 9.472/97, em seu artigo 183, e a Constituição Federal, em seus artigos 49, inciso XII, e 223, parágrafo 3º. Ao amparar-se nesses artigos, o Meritíssimo Juiz faz uso de uma forma de diálogo com a lei, em consonância com os próprios termos e designações que, desde o início de sua decisão, optou por adotar, inclusive quando lança mão de jurisprudência condenatória que aplica "subsidiariamente" a Lei nº 4.117/62, "no que se refere à busca e apreensão de estação ou aparelho de emissora de radiodifusão comunitária regida pela Lei 9.612/98".

Nesse aspecto, não podemos deixar de perceber os atentos e bem abertos olhos da "justiça", rastreando elementos que consubstanciem o caráter subjetivo e parcial de sua decisão. Apenas como exercício de reflexão, no qual ancoramos nossas afirmações, queremos ressaltar aspectos da legislação que foram secundarizados, o que consideramos imperdoável para um homem responsável por fazer valer a justiça e que, em primeira e última instância denunciam o caráter parcial da decisão do Juiz Federal Alysson Maia Fontenele: i) no item 11, acima descrito, a referida autoridade judiciária faz referência ao art. 183 da Lei 9.472, de 16 de julho de 1997, que "dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitucional nº 8, de 1995".

Na íntegra, o teor do art. 183, aludido pelo Juiz Federal em sua sentença contra a Rádio Livre e a liberdade de expressão, diz o seguinte: "Capítulo II – Das Sanções Penais – Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicações: Pena – detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, direta ou indiretamente, concorrer para o crime". Observemos que esta lei e o artigo em questão se referem, exclusivamente, à prática de telecomunicações.

ii) A Constituição Federal de 1988 que, nunca é demais lembrar, é a Carta Magna e Lei maior do Estado brasileiro, em seu artigo 21, separou definitivamente telecomunicação de radiodifusão, evidenciando ser insustentável e anticonstitucional a decisão sobre a apreensão de equipamentos de uma rádio, baseada em legislação que trata tão somente de telecomunicação e não de radiodifusão. Em seu inteiro teor, o texto da Constituição é muito claro e não permite generalizações: "Art. 21 - Compete à União: XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens; b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária; d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; f) os portos marítimos, fluviais e lacustres". A clareza deste texto não deixa margem de dúvida e ancorar de forma atávica o inciso 11 ao inciso 12 da Constituição Brasileira, de forma circunstancial denota, no mínimo, uma atitude estranha que nos possibilita colocar em dúvida a postura "desinteressada" ou "imparcial" do julgador.

VIII – Consideramos curioso o fato do meritíssimo juiz não fazer nenhuma referência ao artigo 5º da Constituição Federal, que declara: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".

Em nossa opinião, fica transparente a vontade de condenar-nos por atividade ilegal, inclusive carregando na tinta todas as vezes em que aparecem termos generalizantes como "rádio clandestina", utilização de "equipamentos mais baratos, sem os filtros necessários", "causa [de] interferência", "filtros necessários para que sons espúrios não sejam emitidos" e outros em que o julgador parte de considerações supostamente gerais para aferir juízo de valor a um particular que é o alvo do pedido de busca e apreensão. Aliás, nada mais sintomático que a referência contida no item 12 do Mandado do Juiz Federal Substituto da 3ª Vara Cível, Alysson Maia Fontenele, posto que o mesmo procurou assentar sua decisão em "estranha" jurisprudência adquirida pelo parecer de um desembargador federal que indica a aplicação "subsidiariamente" da Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962, que "institui o Código Brasileiro de Telecomunicações", tendo sido "modificada e complementada" pelos generais fascistas do pós-64, através do Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967. Nem é necessário ressaltar o que representa uma legislação dessa natureza, ou seja, um verdadeiro entulho autoritário, há muito condenado por juristas que defendem uma ordem democrática e justa em nosso país.

Em nossa opinião o Juiz Federal Alysson Maia Fontenele, não somente fez questão de não atentar para o artigo 5º da Constituição Federal, que anuncia nossas garantias fundamentais, mas, também, tratou de deixar seu senso de justiça bem longe de todo um amplo debate que envolve as rádios livres e as rádios comunitárias no Brasil, inclusive com diversos posicionamentos de juízes e promotores de justiça acerca das incongruências da legislação sobre radiodifusão.

A elaboração e promulgação dessa legislação foi sempre marcada por dispositivos anticonstitucionais, formulados por lobbies de empresas, políticos e grupos econômicos ou religiosos interessados apenas em manter o controle sobre as mais amplas camadas da população brasileira.

Não é insignificante a documentação jurídica, produzida em diferentes instâncias da Justiça Federal, onde os juízes fazem valer os princípios maiores e as garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros, previstos em nossa constituição. Isso quer dizer que existe toda uma jurisprudência que, caso o Juiz Alysson Maia Fontenele estivesse imbuído da premissa de fazer valer uma justiça cidadã como tem sido expressado nas opiniões e decisões de outros juízes federais que atuam no Acre, sua decisão não teria sido precipitada e marcada por um viés tão autoritário.

Basta lembrarmos um dos casos mais famosos envolvendo essa questão das rádios que funcionam dentro do princípio maior da liberdade de expressão. Trata-se da história da Rádio Reversão que virou inclusive um dos temas da Dissertação de Mestrado de Marisa Aparecido Meliani Nunes, defendida na Escola de Comunicação e Artes da USP, em 1995, com o título "Rádios Livres: o outro lado da voz do Brasil".

A Rádio Reversão tinha um raio de alcance de 10 quilômetros e operava com freqüência FM 106.5, na Vila da Ré, Zona Leste da cidade de São Paulo, sem concessão pública ou licença do governo federal e tendo a frente o jornalista Léo Tomaz que idealizou a rádio cujo lema era: "o nosso projeto é de autogestão, de livre pensamento e liberdade de gestão. Somos pela existência de todas as tribos, incluindo a nossa". No entanto, em 1991, após a denúncia de que esse jornalista tinha "infringido o Código Brasileiro de Telecomunicações", feita pelo DENTEL, a rádio teve todos os seus equipamentos apreendidos pela Polícia Federal e Léo Tomaz foi indiciado no artigo 70 da Lei 4.117/62, que diz se constituir "crime punível com a pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nessa Lei e nos regulamentos".

No mês de março de 1994, após toda a tramitação e audiências em que foram ouvidas diversas testemunhas, o Juiz Casem Mazloum, da 4ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo, seguindo inclusive o parecer da Procuradoria da República que inocentou e pediu absolvição do réu, encerrou o caso com a absolvição do mesmo e, mais que isso, o estabelecimento de uma significativa jurisprudência com base no respeito aos princípios constitucionais.

Marisa Meliani Nunes, que teve acesso aos autos do processo, enfatizou que "a sentença do Juiz Cassem Mazloum é no sentido de que Léo Tomaz não cometeu nenhum crime. Isto porque não constitui crime – de acordo com a decisão judicial – colocar no ar emissoras não-autorizadas, desde que de baixa potência, sem fins lucrativos e sem conteúdo religioso ou partidário". Mais adiante a autora destacou que: "o segundo dispositivo em que se atém o juiz é o que determina ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, assim como apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais (caput, artigo 215)".

Uma das passagens mais significativas da sentença do Juiz Federal Cassem Mazloum, de acordo com o texto da autora em destaque, é quando o mesmo, em sua decisão judicial, "define que uma autorização do Estado (concessão de canais) só é necessária quando a radiodifusão se destina a fins comerciais e outros que não culturais. ‘Não há como negar – prossegue a sentença – que o Decreto-lei 236, de 28/02/67, editado no auge do regime autoritário, modificando o Código Brasileiro de Telecomunicações e estabelecendo sanções criminais no caso de instalação ou utilização de aparelhos de telecomunicações, visava cercear a manifestação do pensamento e a veiculação de qualquer forma de atividade cultural, para desta forma exercer o pleno controle da sociedade, levando-a a absorver somente as informações de interesse do regime e dos grupos que representava’ (...) ‘E as seqüelas disso – acrescenta o magistrado – encontram-se presentes até os dias atuais, em que determinados grupos mantêm quase que um monopólio dos meios de comunicação, utilizados freqüentemente para induzir a sociedade a aderir aos interesses de seus proprietários’. Ainda na sentença, o juiz Mazloum destaca que, ‘com a edição da Constituição Federal de 1988, pretendeu-se pôr termo a um regime autoritário e antidemocrático, com a revogação de todas as normas que lhe davam feição, estabelecendo-se um regime democrático, sem qualquer restrição às liberdades individuais e coletivas de manifestação do pensamento, notadamente manifestações e atividades culturais, consoante se vê nos dispositivos acima mencionados’ (...) Ampliando o alcance da decisão para todo o campo da radiodifusão, o que inclui também qualquer tipo de televisão, o juiz Mazloum decreta: ‘Por todo o exposto, verifica-se que a utilização de aparelhos de telecomunicação, de reduzida potência, destinados a atividades culturais, ou no contexto de tais fins, como comprovado no caso dos autos, não constitui atividades que afrontam as normas vigentes, notadamente sob o aspecto criminal. Diante disso... absolvo Valionel Tomaz Pigatti... Após o trânsito da sentença em julgado, restituam-se ao absolvido os bens apreendidos’."

Após essas longas e imprescindíveis citações, caberiam algumas perguntas, tipo: por que o Juiz Federal Alysson Maia Fontenele, não levou em conta um processo como esse da Rádio Reversão e de Léo Tomaz que tanta polêmica causou no âmbito da própria justiça federal? Por que, ao contrário do Juiz Federal Cassem Mazloum e do MPF em São Paulo, o Juiz Alysson Maia Fontenele e o MPF no Acre preferiram ressuscitar um entulho autoritário e "jogar na lata do lixo" as conquistas democráticas e as liberdades individuais e coletivas da Constituição de 1988, asseguradas com muita luta do povo brasileiro contra os generais golpistas e fascistas do pós-64?

Mas, para encerrarmos o oitavo ponto de um decálogo em que evidenciamos que, em toda a "trama" que culminou com a expedição do Mandado de Apreensão e Busca dos equipamentos da Rádio Livre Filha da Muda, a justiça abriu os olhos da forma mais inquietante e danosa possível. Queremos enfatizar aqui as posições de outros juristas, juízes e procuradores da justiça federal no Brasil, que poderiam conferir jurisprudência a uma postura democrática por parte do MPF – Acre e do Juiz Federal Alysson Maia Fontenele, caso tivessem interesse em fazer valer os princípios constitucionais e os reais interesses da sociedade que dizem servir.

No início de 2005, a Radiobrás levou ao ar uma série de reportagens que, até hoje, encontram-se a disposição no site Portal da Cidadania, trazendo ao conhecimento público toda a polêmica e contradições da legislação brasileira acerca do tema da radiodifusão. Dessas reportagens, destacamos os trechos abaixo transcritos.

"O juiz federal aposentado Paulo Fernando Silveira faz várias críticas à legislação que regula as rádios comunitárias. Para ele, não é ilegal ter uma rádio comunitária sem autorização. ‘É lícito e constitucional, porque no artigo 5º da Constituição Federal diz taxativamente que a comunicação é um direito fundamental que pode ser exercido independente de lei’, afirma. Segundo o inciso IX do artigo 5º da Constituição brasileira, ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’.

Autor de um livro sobre a radiodifusão comunitária, Silveira diz que o governo só pode restringir os direitos fundamentais se houver um interesse real e concreto da sociedade para defender. E acrescentaria que a Constituição deve prevalecer sobre as leis comuns. ‘Lei é a vontade dos legisladores com a anuência do Executivo, dos órgãos eleitos. Mas a Constituição é a vontade do povo. A lei tem que se adequar à Constituição, e não o contrário’, defende.

Por outro lado, a Lei Geral de Telecomunicações (9.472/97) define o espectro de radiofreqüência como um recurso limitado, ‘constituindo-se em bem público’, e a própria Constituição Federal, no artigo 223, diz que é competência do ‘Poder Executivo a outorga e renovação de concessão, permissão e autorização de serviço de radiodifusão sonora’.

O advogado Paulo Castello Branco explica: ‘na radiodifusão, o sistema não comporta todo mundo ter uma rádio’. O juiz rebate. Baseado no artigo 30, inciso I, da Constituição, defende que o interesse local não é competência da União e sim do município, o que invalidaria a lei que institui as rádios comunitárias. ‘A Lei 9.612/98 é inconstitucional no todo’, afirma. Assim, apenas as rádios que têm alcance nacional dependem da outorga do Poder Executivo Federal para funcionarem. As comunitárias, por terem baixa freqüência e alcance restrito, estariam sujeitas ao Poder Executivo Municipal. ‘Cada ente político tem sua esfera privativa de competência. Então, se a competência é municipal, a União não pode entrar naquele assunto. Aí, a lei federal é inconstitucional’.

Para Silveira, as leis utilizadas para punir com detenção os responsáveis por rádios comunitárias clandestinas, também não deveriam ser aplicadas, já que a Constituição separou telecomunicações de radiodifusão (artigo 21, incisos 11 e 12 respectivamente). Segundo o juiz, o artigo 183 da Lei Geral de Telecomunicações não pode ser aplicado à radiodifusão, porque a lei é específica para telecomunicações. Já o artigo 70 da Lei 4.117/62, que foi mantida no que se refere à radiodifusão, também não poderia ser aplicado. O artigo se refere a telecomunicações e não a radiodifusão. ‘Os termos em Direito Penal têm que ser específicos e fechados. Não podem ser interpretados amplamente. Teria que falar radiodifusão. Como não fala, não pode ter crime’, conclui.

Outras interpretações consideram que o Estado, quando não consegue prestar o serviço e demora demais para decidir – caso das autorizações do Ministério das Comunicações -, desrespeita o devido processo legal. Com base nessa argumentação, em 2003, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça indeferiu o pedido da Anatel de suspensão da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª região, que abrange o Rio Grande do Sul.

O TRF havia permitido que a rádio de uma associação comunitária de Porto Alegre (RS) continuasse funcionando até que fosse apreciada a habilitação da mesma pelo Poder Executivo. ‘Toda autoridade pública tem obrigação de responder aos requerimentos que foram feitos dizendo concedo ou não concedo com as justificativas’, atesta Silveira.

Assim como Silveira, outros juízes já negaram pedidos de busca e apreensão da Polícia Federal contra rádios, por interpretarem as leis de maneira a beneficiar os proprietários das rádios comunitárias. O desembargador José Luiz Germano da Silva, que se aposentou no final de 2004, também negou a emissão de mandados de busca e apreensão, afirmando na rejeição da denúncia que mesmo ‘o fato de a rádio inserir publicidade em sua programação não denota, por si só, fins lucrativos. Sendo a rádio vinculada a uma associação civil, certo é que, para funcionar, tem seus custos, e, nada impede que tenha renda, até mesmo para custear suas despesas operacionais, não se confundindo isso com auferição de lucro pela diretoria ou associados’. Sobre a conduta do administrador da rádio, que a faz operar sem a devida autorização, Silva decretou que ‘constitui-se em ilícito administrativo, mas é penalmente irrelevante, ensejando a rejeição da denúncia’. Da mesma forma, também julga o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara e Juizado Especial Criminal Adjunto do Distrito Federal".

IX – Voltando aos termos expressos do Mandado de Apreensão e Busca, assinado e expedido pelo juiz federal Alysson Maia Fontenele, queremos destacar os itens 13 e 14, como forma de deixar claro o quanto o olhar do mesmo foi pautado pela vontade, opção, pré-determinação a um tipo de interpretação e manipulação da lei que fere os princípios maiores da Constituição.

No item 13, afirma o juiz substituto da Seção Judiciária do Estado do Acre – 3ª Vara: "A Anatel afirma que não há a referida autorização, fl. 5, e o Delegado da Polícia Federal noticia que em contato com o gerente da referida autarquia lhe foi informado que a freqüência e potência de operação da transmissora pode interferir na comunicação entre aeronaves (fl. 35)". Observemos que o texto do juiz é produzido a partir de uma instância generalizante e marcado por interpretações que levam a crer, sem a devida apuração ou laudo técnico de profissionais da área, que a Rádio Livre Filha da Muda estaria prejudicando serviços como os de aeronaves. É sabido que tal interferência pode ocorrer, mas quando se trata de um equipamento seguro, principalmente, dotado do dispositivo PLL (como é o caso do nosso transmissor) e devidamente homologado pela própria Anatel, essa possibilidade é quase nula ou é na mesma proporção que pode acarretar qualquer outra emissora com licença pública.

O mais aberrante é o teor do item 14, do Mandado de Busca e Apreensão, alvo dessas reflexões: "Diante do objetivo de proteger a operacionalidade do sistema de comunicações, da previsão legal contida no Parágrafo Único do artigo 70 da Lei 4.117/62, e dos argumentos aqui expendidos, DEFIRO o pedido de busca e apreensão dos equipamentos da rádio denominada "Filha da Muda", a ser efetuado nas dependências da Universidade Federal do Acre, mas especificamente no Anfiteatro Garibaldo Brasil (sic), ressalvando que a diligência deverá incidir apenas sobre os equipamentos que se refiram aos fatos apurados neste inquérito".

Nem é necessário dizer, repetimos, o que significa uma sentença baseada na famigerada Lei 4.117/62, complementada e modificada pelo Decreto-lei 236 dos fascistas generais que impuseram, após o golpe de 1964, um terrorismo de estado, exceção e de arbítrio, reprimindo, torturando e assassinando milhares de cidadãos brasileiros. No entanto, não podemos deixar de lembrar que a Constituição de 1988, como bem ressaltou o juiz federal do Estado de São Paulo, Cassem Mazloum, possibilitou por um fim ao "regime autoritário e antidemocrático, com a revogação de todas as normas que lhe davam feição, estabelecendo-se um regime democrático, sem qualquer restrição às liberdades individuais e coletivas de manifestação do pensamento, notadamente manifestações e atividades culturais..."

A decisão favorável ao processo de busca a apreensão dos equipamentos da Rádio Livre Filha da Muda, baseada numa legislação caduca e autoritária, reflete a concepção jurídica daqueles que a impetraram e concederam. Além do mais fere de morte a autonomia universitária. A apreensão dos equipamentos da rádio foi um ato ilegal sob diversos aspectos e, mais ainda, quando o art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, é claro e taxativo ao afirmar que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

Por outro lado, afirmar que seu objetivo é "proteger a operacionalidade do sistema de comunicações", como faz o juiz federal Alysson Maia Fontenele, é algo que soa profundamente escandaloso não apenas pela ausência de legalidade, mas, também, de um laudo técnico/pericial, produzido por especialistas da área de física que consubstanciem tal opinião, sob pena da mesma não passar de "fraseologia oca", produzida com a única finalidade de cercear a liberdade de expressão ou atender a interesses não explícitos no processo. É tudo muito lamentável.

X – Para finalizar queremos ressaltar algo que consideramos muito estranho nos procedimentos utilizados pela Polícia Federal no dia da execução do mandado de apreensão e busca. Os policiais não estavam acompanhados de nenhum técnico da Anatel e, segundo palavras do delegado que comandou a operação, existiam, entre eles, dois peritos no assunto. No entanto, na hora de levar os equipamentos de radiodifusão, os mesmos evidenciaram desconhecer completamente o que isso significa, pelo fato de que entravam em contradição a todo o momento sobre quais equipamentos deveriam levar e, ao final de tudo, após uma verdadeira bravata do delegado (gravada em vídeo que circula no Centro de mídia Independente), o mesmo decidiu levar além do transmissor, o computador, a mesa de som e o compressor que nada tem a ver com o equipamento de transmissão. Portanto, o bizarro e o aberrante acompanharam toda a farsa desse processo que culminou com a busca e apreensão dos equipamentos da Rádio Livre Filha da Muda, um verdadeiro atentado contra a democracia, a liberdade de expressão e o estado de direito em nosso país.

Rio Branco – Acre, 29 de janeiro de 2007.

"Não morrerá a flor da palavra. Poderá morrer o rosto oculto de quem a nomeia hoje, mas a palavra que veio do fundo da história e da terra já não poderá ser arrancada pela soberba do poder (...) Os poderosos tentaram apagar nossa luz primeira. Tudo inútil, pois muitas luzes já se acenderam e todas são primeiras..."

Coletivo Lagartixa responsável pela Rádio Livre "Filha da Muda"

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